TEMAS
PENSAMENTO
«Doutrina Social da Igreja, o Estado, as Ideologias e a Crise» (*)

A ideia de escrever este livro surgiu essencialmente de uma constatação de que os católicos não conhecem bem este corpo doutrinal da doutrina social da Igreja, há muita confusão em torno do que é que é a doutrina social da Igreja, em torno das ideias políticas, económicas e sociais da Igreja e muitas vezes perguntas como se a Igreja é de esquerda ou de direita, como é que a Igreja se relaciona com o socialismo, com o liberalismo ou com o comunismo são perguntas que geram muita confusão e que não são claras para muitas pessoas. Por vezes ouvimos declarações algo disparatadas como Jesus ter sido o primeiro comunista do mundo e que na maioria das vezes não correspondem à verdade. Surge também da necessidade de, como católico que sou, dar a conhecer este corpo doutrinal. O livro é sobre a doutrina social da Igreja, mas não trata de tudo aquilo sobre o que versa a doutrina social da Igreja. Por isso tem um subtítulo, o Estado, as ideologias e a crise. Não era o meu objectivo debruçar-me sobre todos os temas sobre os quais a doutrina social da Igreja se pronuncia.
Em termos metodológicos o que eu comecei por fazer foi explicar no 1º capítulo a natureza, a origem e o objecto da doutrina social da Igreja, que é uma parte essencial para compreendermos os ensinamentos dos papas, depois na 2ª parte do livro faço uma análise daqueles que, do meu ponto de vista, são os documentos mais importantes para o tema em apreço. Na parte final tiro as conclusões mais importantes à luz daquilo que me propus analisar inicialmente. Tento definir quais as funções que a Igreja atribui ao Estado, como é que a Igreja encara certas ideologias e como é que a Igreja encara a actual crise. É uma boa forma para qualquer pessoa se familiarizar com este corpo doutrinal.
A doutrina social da Igreja é uma doutrina que é dirigida a todas as pessoas de boa vontade, não apenas aos católicos. A última encíclica do Papa Francisco já se vai pronunciar a todas as pessoas deste mundo, a expressão que ele usa é "a cada pessoa que habita neste planeta", é dirigida a todas as pessoas e não apenas, como dizia agora o jornal "O Observador" na rubrica que fez sobre a doutrina social da Igreja, não é dirigida só aos católicos mas, desde há muito tempo, a todas as pessoas de boa vontade e agora, há menos tempo, a todas as pessoas que habitam neste planeta.
Começando com uma provocação, a Igreja vem sendo alvo de várias críticas em termos políticos desde há muitos anos, mas mais particularmente o Papa Francisco vem sendo alvo de muitas críticas, há quem diga que este Papa é muito de Esquerda, há muitos socialistas que tentam puxá-lo para o seu campo ideológico. Assim surge a pergunta de que forma é que a Igreja se posiciona face aos temas políticos e face às ideologias. O primeiro esclarecimento que é preciso fazer é em relação à natureza da própria doutrina social da Igreja e a primeira coisa que se tem de dizer é explicar que quando se fala da doutrina social da Igreja não estamos no plano da ideologia, mas sim no plano da teologia e particularmente da teologia moral. A doutrina social da Igreja não é uma ideologia, não é um sistema de ideias que visa promover a transformação do mundo e se necessário das pessoas, é sim uma doutrina que não visa mudar as pessoas, mas sim compreendê-las, não visa transformar a sociedade mas tentar compreender a sua dinâmica. O Papa João Paulo II escreveu de forma bem clara que a doutrina social da Igreja não é uma ideologia, mas a formulação apurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do Homem na sociedade e no contexto internacional à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar essas realidades examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas de ensinamento do Evangelho sobre o Homem e sobre a sua vocação terrena. Ela pertence por conseguinte não ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral. Isto tem uma consequência muito importante e que gera muitas confusões, a doutrina social da Igreja sendo teologia moral ela não procura respostas técnicas aos problemas que aparecem, procura dar uma orientação segura baseada em princípios de reflexão e que sejam aceites por todos. Não devemos esperar que o Papa Francisco se venha pronunciar sobre temas técnicos específicos, por exemplo como é que as agências de cotação financeira devem medir os ratings das dívidas públicas dos Estados. O que a Igreja visa com esta doutrina social é orientar o comportamento das pessoas, isto é importante para que a Igreja não seja vítima de acusações infundadas.
Quando estamos a falar sobre se o Papa é de esquerda ou de direita nada melhor que ouvir o que o próprio Papa diz e o Papa quando confrontado com esta pergunta recentemente respondeu de uma forma muito clara: "eu não sou de esquerda, a minha doutrina é a doutrina social da Igreja". É uma doutrina que podemos definir de uma forma genérica como a resposta doutrinal da Igreja às questões sociais económicas e políticas a partir dos ensinamentos evangélicos.
A doutrina social da Igreja, começou-se a sistematizar a partir da encíclica Rerum Novarum de 1891 do Papa Leão XIII, esta encíclica é a pedra basilar a partir da qual a Igreja depois vai começar a estruturar, a organizar o seu pensamento. Esta é escrita num contexto particular da revolução industrial em que eram cometidos vários excessos, nomeadamente contra a classe operária, as pessoas eram obrigadas a trabalhar muitas horas seguidas, falamos de 16 horas de trabalho com mulheres e crianças também a trabalhar. É neste contexto que o Papa decide intervir com um documento que vai afrontar tudo aquilo que se passava no seu mundo. Vai escrever esta primeira encíclica, a partir da qual tudo se começa a sistematizar e em que, curiosamente, antes de começar a atacar o Estado liberal que tinha permitido que aquela situação se instalasse, vai começar por atacar aquilo que à época era visto como remédio para aquele problema, o Socialismo. O que o Papa começa por fazer é demarcar-se do Socialismo, do Estado proprietário, dando dois argumentos, em primeiro lugar a defesa da propriedade privada, dizendo que a propriedade privada não é mais do que o salário transformado, privar os trabalhadores da propriedade privada só iria piorar a sua situação, depois rejeita também a luta de classes, o Papa diz que há diferenças que existem e que são ditadas pela natureza, uns nascem com mais talentos e isso pode ser bom para a dinâmica e o funcionamento da própria actividade. Não está o Papa com isto a defender o abstencionismo do Estado, particularmente em questões laborais, o Estado deve intervir sem quaisquer complexos naquilo em que for necessário, nomeadamente em defesa dos trabalhadores. É necessário encontrar aqui um justo equilíbrio.
40 anos depois desta encíclica é publicada uma nova encíclica: Quadragesimo Anno é escrita em 1931 pelo Papa Pio XI e num mundo particularmente conturbado, Mussolini tinha chegado ao poder em Itália em 22, Estaline na União Soviética em 28 e Hitler na Alemanha ia chegar em 33, era um mundo assolado por tentações totalitárias e que preocupava a Igreja profundamente, principalmente em dois aspectos, em primeiro lugar pelo engrandecimento, endeusamento do Estado que suprimia as liberdades individuais e depois porque isso punha em causa a dignidade da pessoa humana, pela experiências práticas que conhecemos dessas ideologias. Não é de estranhar que, num mundo assolado por estas experiências totalitárias, o Papa venha propor a reforma das instituições e uma reforma do Estado, não a que actualmente se fala mas em termos mais amplos, e é aqui que o Papa Pio XI vai formular o princípio da filosofia social da subsidiariedade, nas sua palavras é assim formulado: "Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e indústria para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção é ajudar os seus membros, não destruí-los e absorvê-los. Deixo pois a autoridade pública sem o cuidado de associações inferiores com aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado. Poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete." Há aqui duas ideias muito importantes associadas ao princípio da subsidiariedade, em primeiro lugar o Estado não deve absorver os corpos intermédios, não se deve sobrepor à família e ao indivíduo. Em segundo lugar, o próprio Estado no seu modo de funcionamento deve operar de uma forma descentralizada porque parece conhecer melhor os problemas das pessoas quem está mais próximo deles. As decisões serem todas tomadas por um gabinete na capital de um país é menos desejável do que as decisões serem tomadas de uma forma descentralizada.
O Papa Pio XI volta a pronunciar-se em termos económicos sobre o tema da livre concorrência dizendo que quando exercida dentro de certos limites ela é justa e vantajosa, contudo ela não pode de modo nenhum servir de norma reguladora à vida económica e aqui o Papa, conhecedor da natureza fria do ser humano sabe que os excessos são cometidos. A livre concorrência contida dentro de justos e razoáveis limites e mais ainda o poderio económico devem estar sujeitos à autoridade púbica em tudo o que é da sua alçada. Na parte final desta encíclica o Papa faz uma distinção importante, reconhece que o socialismo em sentido lato se dividiu em duas facções distintas, de um lado o comunismo e do outro o socialismo em sentido estrito ou socialismo mitigado. A novidade desta encíclica não é o que o Papa vem dizer do comunismo, isso já se sabia, mas sim o que vem dizer sobre o socialismo mitigado. O Papa reconhece que este é mais moderado que o comunismo, porque não só professa abster-se da violência, mas abranda e limita, embora não as suprima de todo, a luta de classes e a extinção da propriedade particular. Ainda assim este socialismo mitigado concebe a sociedade de um modo completamente adverso á verdade cristã, por isso socialismo religioso ou socialismo católico são termos contraditórios, ninguém pode ser bom católico e verdadeiro socialista.
100 anos depois da encíclica Rerum Novarum, foi publicado um documento que para mim deve ser o ponto de partida para o estudo da doutrina social da Igreja, a encíclica Centesimus Annus, do Papa João Paulo II. É um documento extenso, mas muito rico e faz uma reflexão completa sobre a Rerum Novarum, portanto uma pessoa quase não precisa de a ler para perceber o que foi escrito pelo Papa Leão XIII. É escrita em 1991, dois anos após a queda do muro de Berlim e na sequência do final da guerra fria. Há uma nova condenação muito forte ao socialismo, que a seu ver parte de um erro de carácter antropológico, porque perspectiva cada Homem como uma peça de uma engrenagem social e o Papa defende de uma forma muito clara que o Homem não está ao serviço do Estado, antes é o seu fundamento e o seu fim. Há um curiosidade na encíclica Centesimus Annus, o Papa João Paulo II diz: "Com certeza que é justo o princípio que as dívidas devem ser pagas, não é lícito porém pedir ou pretender um pagamento quando esse levaria de facto a impor opções políticas tais que condenariam à fome e ao desespero de populações inteiras. Não se pode pretender que as dividas contraídas sejam pagas com sacrifícios insuportáveis, nestes casos é necessário encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida compatíveis com o direito fundamental dos pobres à subsistência e ao progresso." É importante termos alguns cuidados para que isto não chegue aos ouvidos do Bloco de Esquerda, sob pena do Papa João Paulo II começar a ser citado por Catarina Martins.
Mais recentemente, em 2009, já com o Papa Bento XVI é publicada a Caritas in Veritate que é um documento bastante extenso e escrito já na sequência da actual crise económica, portanto já tem reflexões concretas sobre a crise dos dias de hoje e face a esta crise o Papa Bento XVI vai propor uma renovada avaliação do papel e do poder do Estado. Ao contrário do que muitos liberais gostariam, o Papa vai dizer que a economia integrada dos nossos dias não elimina a função dos Estados, só obriga os governos a uma colaboração recíproca mais intensa. Razões de sabedoria e prudência sugerem que não se proclame depressa demais o fim do Estado, e relativamente à solução da actual crise a sua função parece destinada a crescer readquirindo muitas das suas competências. O Papa aqui volta a atribuir um papel importante ao Estado na solução da actual crise e vai atribuir ao Estado uma importante função de regulação dos mercados, porque o mercado nas suas palavras "não consegue gerar a coesão social de que precisa para bem funcionar, não é capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas necessidades". Perante a crise das redes tradicionais de solidariedade, que são impostas pelas restrições orçamentais, e isso acontece muito em Portugal, o Papa vai realçar a importância de um sistema que funcione assente em três sujeitos, o Estado, a Sociedade Civil e o Mercado, neste momento em que as redes tradicionais de solidariedade estão a falhar e as pessoas estão a contar menos com o apoio do Estado é importante que a sociedade civil também possa, através das suas próprias iniciativas, ajudar quem está a atravessar maiores dificuldades.
Chegamos à exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, que já é publicada em 2013 e que é um documento que não traz nenhuma inovação, mas de facto tem um palavreado mais agressivo naquilo que se pretende com a forma como a Igreja olha para os mercados. O Papa entende que na origem desta crise financeira está uma crise antropológica que recusa a primazia do ser humano sobre tudo o resto. Esta inversão de valores acaba por abrir portas a contrastes que a seu ver são absolutamente flagrantes. O Papa tem umas frases muito marcantes que nos deixam a pensar: "Como é que é possível a descida de dois pontos na bolsa abrir no telejornal e a morte de uma pessoa que morra ao lado de nossa casa não o é?". É antes demais por isso uma crise antropológica, porque nos obriga a rever os nossos valores, sob os quais se rege a nossa sociedade. Diz o Papa que estes desequilíbrios vêm de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira e que por isso negam o direito de controlo do Estado, não é que isto seja novo mas é de facto num palavreado mais agressivo. Ademais a dívida e respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia e os cidadãos do seu real poder de compra e a corrupção e evasão fiscal também estão, evidentemente, a proliferar. Acaba por pugnar por uma reforma do sistema financeiro, diz que é de facto urgente que haja essa reforma, tendo em conta que o dinheiro em vez de governar sirva as pessoas. No fim volta a defender que o Estado tem um papel importante na regulação dos mercados e na defesa do bem comum, reafirmando a importância da relação do princípio de subsidiariedade e da solidariedade.
Queria deixar aqui duas notas finais, em primeiro lugar eu acho que a Igreja tem um documento que é muito importante lermos, que se chama Nota Doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política. Tem de facto alguns ensinamentos que são importantes e nesse documento a Igreja densifica 7 exigências fundamentais a que os católicos devem atender no momento em que vão exercer o seu direito de voto. 7 pontos chave e que por maioria de razão também estão presentes no diálogo que a Igreja estabelece com as ideologias. Esses pontos são:
1 - Defesa incondicional da vida desde o momento da concepção até ao da morte natural e consequente rejeição de todas as leis que atentem contra a vida, como sejam as do aborto e da eutanásia. É por isso que eu entendo que é muito difícil um católico estar no Partido Socialista neste momento.
2 - A tutela e a promoção da família fundada no património monogâmico entre pessoas de sexo diferente e protegida na sua unidade e estabilidade e a recusa da sua equiparação ou da paridade de tratamento legal entre a família e outras formas de convivência.
3 - A garantia da liberdade de educação, no respeito do princípio de subsidiariedade que os pais têm em relação aos filhos.
4 - A tutela social dos menores e a libertação das vítimas das modernas formas de escravidão, onde se inclui a droga e a exploração da prostituição.
5 - A defesa do direito à liberdade religiosa.
6 - O progresso para uma economia a serviço da pessoa e do bem comum no respeito dos princípios de subsidiariedade, da solidariedade e da justiça social.
7- A promoção da paz, entendida como fruto da justiça e efeito da caridade donde resulta a recusa radical da violência e do terrorismo. Estes últimos dois pontos são mais consensuais e acabam por ser comuns aos partidos que têm assento parlamentar em Portugal, mas nos quatro primeiros devia haver uma reflexão atenta por parte dos católicos quando vão exercer o seu direito de voto.
Por último queria fazer referência a uma situação que lamentavelmente acontece muitas vezes, e que é as pessoas muitas vezes apropriarem-se da voz da Igreja. A Igreja não obstante todas estas considerações que faz, considera legítimo o pluralismo e a divergência de opiniões entre os católicos visto que da sua perspectiva uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes. Não quer dizer que haja um único partido em que os católicos se possam encaixar, pode haver mais do que um desde que certos princípios sejam respeitados. A Igreja rejeita a sua associação a quaisquer regimes, sistemas ou partidos políticos, portanto não é legitimo, como aconteceu há uns meses com um dirigente partidário dizer que se o Papa Francisco votasse em Portugal votava nesse partido. Isto é ilegítimo e uma pessoa não se pode apropriar da voz da Igreja para induzir em erro aqueles que são católicos e que se preocupam com a posição e opinião do Papa Francisco. Quando estas coisas acontecem devem os católicos esclarecidos vir a público esclarecer e dizer que este senhor está a agir ilegitimamente e era melhor ir ver o que a Igreja tem a dizer sobre isso antes de vir dizer em quem o Papa votaria em Portugal.