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POLÍTICA

O papel dos cristãos na política e nas empresas (*)

2012-11-08 | António Pinto Leite
O papel dos cristãos na política e nas empresas (*)

Estou aqui com muito gosto e espero que aquilo que vou dizer seja do agrado - imaginem de quem? - do Eng. Adelino Amaro da Costa. Sou um homem de fé, acredito que ele está aqui, presente em espírito, na instituição dele. Que ele se reveja naquilo que eu vou dizer.

Agradeço ao Pedro [Pestana Bastos] o convite, as suas palavras. O Pedro é uma óptima companhia, está sentado à minha esquerda no Conselho Superior de Magistratura, em todos os sentidos. [RISOS]

Há dois ou três pontos que gostava de sublinhar sobre a minha vida, antes de dizer o que vou dizer.

A primeira é que sou - provavelmente como toda a minha geração - um self made man. Tinha vinte anos no 25 de Abril, os meus pais saíram de Portugal, ficámos sem nada, tive que tirar o curso por mim. Ainda tive a bênção de ter de cuidar de uma avó. Sou um self made man. Tirei o meu curso com um esgotamento cerebral, porque era segurança durante a noite, dava aulas na Católica às oito da manhã, sem dormir, e depois dava aulas, ao final da tarde, na Universidade Clássica. Isto para vos dar uma ideia de que a vida não partiu de nenhuma riqueza adquirida, não partiu de nenhuma circunstância de favor, a não ser os valores que os meus pais me deram, que são aqueles que unem esta sala, seguramente.

Por outro lado, tive o privilégio - que disso se trata - de dirigir várias organizações, desde uma instituição do ensino superior, à sociedade de advogados de que sou sócio, a Morais Leitão, de que fui Managing Partner até há dois meses atrás, durante uma década. Um sócio duma sociedade de advogados com 250 pessoas, 170 advogados, é um empresário e é um gestor. Vocês conhecem a Morais Leitão, é uma firma prestigiada e empresarialmente forte. De todo o trabalho feito, o que mais me agradou foi o prémio que ganhámos, em 2010, de Empresa de Excelência para Trabalhar, e de termos tido um índice de satisfação interna de 9 em 10.

O que vou dizer nasce, simplesmente, de um acontecimento, de um facto da vida: Eu era Vice-Presidente da ACEGE, e o Presidente, o João Alberto Pinto Basto, pediu-me para fazer o discurso de abertura do Congresso de há três anos - estava lá o Professor Cavaco Silva, Presidente da República, estava lá o Dr. José Manuel Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, e o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa. Havia problemas de protocolo sensíveis, quem fala primeiro, quem fala depois, quem fala mais tempo, quem fala menos tempo, quanto tempo fala cada um. Enfim, tudo aquilo me consumiu imenso, o protocolo - imenso! E do protocolo resultou que eu só podia falar oito minutos.

Naquela manhã de 17 de Abril de 2009, tinha que escrever um discurso para ser lido daí a poucas horas e que só durasse oito minutos. Nunca escrevo os discursos, mas tinha de o fazer para ter a certeza de que só duraria oito minutos. Aprendi a sobreviver como cronista regular do Expresso, e uma das técnicas de sobrevivência quando bloqueamos é ir à biblioteca, tirar um livro qualquer, abrir numa página qualquer e começar a ler. Porque isso interrompe a advocacia, interrompe os filhos, interrompe o stress, e depois, por dentro das palavras, vêm as associações de ideias que nos levam a um tema e, depois de escolhido o tema, nós escrevemos. Não sei se têm esta experiencia - eu tenho.

E lá fui eu, tirei um livro ao calhas - era um livro branco, escrito por um pastor luterano, que morreu num campo de concentração. Comecei a ler, era sobre ética, era um livro muito denso. E a certa altura, no meio daquela densidade toda, aparece uma frase que, realmente, devo-vos dizer, marcou toda a minha forma de pensar. E a frase é: "O centro vital da ética cristã é o amor." Pensei logo, se isto é assim, se o meu "dever ser" radica aqui, no amor, então isto é assim também na economia. Continuei perplexo, nunca ouvira falar nisto, não me lembrava, nem da catequese, nem das encíclicas dos Papas, nem dos grupos cristãos em que reflectimos sobre economia - não me lembrava de ter visto ou ouvido a palavra Amor aplicada à economia.

Lembro-me, logo na altura, perguntar a Deus: "Queres que eu fale nisto daqui a três horas? A quatrocentos empresários? Só homens? "E pareceu-me claramente que Ele me dizia que "Estás a aperceber-te de algo muito importante dentro de ti, que deves comunicar, independentemente de como as pessoas vão reagir". Assim fiz e o silêncio dos quatrocentos homens endurecidos da vida económica, que estavam na Universidade Católica, impressionou-me enormemente. E pus na minha mente um propósito, um compromisso: "Tenho que pôr frente a frente a economia e o Amor, tenho que perceber como deslindo isto. Isto só pode ser assim, mas como é que é assim?" Este era o desafio e o meu propósito.

Comecei por tentar encontrar um edifício lógico para este caminho, e o edifício lógico estava no Evangelho. Cristo diz a um doutor da lei que o primeiro mandamento é "amar a Deus sobre todas as coisas", mas acrescenta que há um outro mandamento "semelhante" a este: amar o outro como a ti mesmo. Ou seja, o amor ao próximo tem a categoria de primeiro mandamento. E eu pensei "No plano lógico, se isto é assim, tudo se conforma segundo este princípio e, portanto, a economia também tem que estar ordenada por esse mesmo princípio". Tirei, então, uma conclusão absolutamente óbvia, mas que é importantíssima: é que não me cabia a mim perguntar se era ou não era assim, a mim só me cabia uma tarefa, que era tentar perceber como é que era assim. Isto é, tentar perceber o que o Amor e a economia têm a dizer um ao outro.

Dei mais tarde uma entrevista ao Diário Económico e o jornal pôs em título "O amor ao próximo é um critério de gestão". Isso levou-me a um facto também muito importante neste percurso, que foi ser convidado para speaker do Lisbon MBA. Eram setenta jovens, entre os trinta e os quarenta. Fiz um exercício com eles, pedindo que levantassem o braço se discordassem e que ficassem silenciosos se estivessem de acordo. Comecei por lhes perguntar se um líder humanizado fazia uma organização humanizada, e eles ficaram todos em silêncio. Parece óbvio, mas não é tão óbvio assim. Fiquei muito satisfeito por pensar que aqueles jovens, já lideres de organizações ou que para lá caminham, acreditam na influência decisiva do líder no modelo da empresa, da organização.

A segunda pergunta era se uma organização humanizada, fazia as pessoas felizes. Silêncio na sala. Fiquei também muito contente, aqueles futuros líderes empresariais, cristãos e não cristãos, acreditavam, e acreditam, que um líder humanizado faz uma organização humanizada, e uma organização humanizada faz pessoas felizes.

Depois, uma terceira pergunta: Se pessoas felizes numa empresa fazem uma empresa produtiva? E todos concordaram. Outro passo, a seguir, foi se empresas produtivas fazem uma economia competitiva? Todos concordaram. E, finalmente, se uma economia competitiva faz uma sociedade justa? E aí houve uma senhora que se levantou, cheia de razão, e disse, "Não, a China tem uma economia competitiva e não é uma sociedade justa". E eu disse, "Tem toda a razão, mas concordamos que uma economia competitiva é condição sine qua non, é condição necessária, ainda que não suficiente, para que haja uma sociedade justa". E todos concordaram. Foi um momento bonito aquele exercício: no princípio de tudo estava um líder humanizado, estava o Amor - porque não há lideres humanizados sem Amor - no final uma economia competitiva e a sociedade justa.

Outro ponto partilhei com os professores de Economia. Eles concordaram nisto: o valor de uma teoria económica depende de uma simulação em que todos os agentes actuam da forma prevista na teoria. Pode-se dizer, é impossível que todos actuem desta forma; pronto, a teoria poderá implodir por aí. Mas antes de implodir por aí, convém fazer a simulação - e se todos agissem deste modo? Qual o resultado para as empresas e para a economia?

O que é que significa o amor como critério de gestão? O critério significa, na minha conclusão, uma coisa bem simples, e que se retira do Evangelho: significa tratarmos os outros como gostaríamos de ser tratados, como se estivéssemos no lugar deles, com a informação que dispomos. Devo dizer-vos que, em termos de operacionalidade de decisão ética, não encontrei até hoje, na minha vida pessoal, no meu discernimento diário, critério mais confortável e mais clarividente.

Como tratar, por exemplo, os nossos colaboradores, no actual contexto: como é que nós gostaríamos de ser tratados se estivéssemos no lugar deles com a informação de que dispomos? Como é que nós gostaríamos de ser tratados se estivéssemos  no outro lado da rua - no lado do sofrimento -  se estivéssemos no lugar deles com a informação de que dispomos sobre a nossa empresa? Como tratar os nossos fornecedores - esta vergonha portuguesa do pagamento fora de horas - com a informação que eu tenho sobre a minha empresa?

Por outro lado, para além da sua operacionalidade ética na gestão - nós sermos a medida do tratamento que damos aos outros -, o critério do amor na gestão não deixa nada indiferente.

É um critério de discernimento e é uma "moinha". É uma moinha que cada um sente de bom pelos outros, ou não. "Você tem a sua moinha, eu tenho a minha." Esta moinha tem a ver com a nossa generosidade. As organizações empresariais são também espaços de generosidade - generosidade pessoal, generosidade de partilha de resultado, generosidade de foco no sentido social da organização, da função social da produção de riqueza.

E o critério tem um lado muito importante: o céu e o inferno acontecem na terra, e nós podemos ser nas relações empresariais e económicas céu para as pessoas ou um inferno para as pessoas - esta é que é a verdade. E este conceito ajuda-nos a ser mais céu e menos inferno.

Nesta matéria, tenho um pensamento provocatório - provocatório! - e que é o seguinte: na economia há três tipos de pessoas, há os senhores, há os possidónios e há os delinquentes.

Nas organizações não há assim tantos delinquentes, mas há muitos possidónios. E possidónios - não no sentido social, não me entendam mal - mas no sentido de sermos banais, de não acrescentarmos nada de maior... Há dias um amigo meu, com função de Director Geral, incansável e profissional notável, contava-me que tinha entrado no gabinete do Presidente, mais novo do que ele, e tinha desabafado, "Estou muito cansado". A resposta foi esta, "Mas então, não gosta de trabalhar?" Isto pode acontecer connosco, isto é o inferno. E isto é um possidónio no seu melhor, porque lhe falta a grandeza de alma, o sentido da grandeza do momento perante aquela pessoa que está no limite, falta-lhe o sentido do acolhimento, inclusive o sentido da solução.

Outro ponto nesta investigação que achei muito interessante foi a questão da exigência. No Conselho de Patrocinadores da ACEGE, quando este assunto já estava em curso e se discutia se a ACEGE devia ou não fazer um Congresso sobre este tema, um grande senhor da economia diz-me "A sua ideia é muito apelativa mas é inviável, porque não supera o problema da exigência que é precisa nas empresas. Há uma contradição entre o amor e a exigência empresarial". Na altura, respondi "Quem são as pessoas que o senhor mais ama na vida? São os seus filhos?". Respondeu: " Sem dúvida". "Há alguém com quem o senhor seja mais exigente do que com os seus filhos?". "Não." Aliás, se vocês virem, se numa comunidade laboral algum membro falhar, não tem um efeito tão gravoso como tem, por exemplo, numa comunidade de voluntários, onde é suposto ninguém falhar, seja a que horas for, seja para o que for.

Portanto, o ponto de que o amor é incompatível com a exigência, é exactamente o contrário - não há nada mais exigente do que o amor.

Outro tema que o critério do amor levanta é o da dor, se pode ser entendido como incompatível com causar dor na empresa. Mas não é assim: o bem maior é sempre a sustentabilidade da empresa. A dor faz parte da vida humana e faz parte portanto da economia. E a economia é, por natureza, incerta. Há muitas formas de gerir o sofrimento empresarial e quanto mais dificuldades houver mais sentido o amor faz. Há muitas formas, por exemplo, de equacionar um despedimento inevitável, como há muitas formas de acompanhar o sofrimento das pessoas numa reestruturação empresarial.

Outro ponto essencial para um cristão é ter presente que Deus ama as empresas. Que aconteceria aos seres humanos se acabássemos com as empresas? A Deus não agradam todos os actos da nossa vida no quadro empresarial, muitas coisas que fazemos. Mas Deus ama as empresas, como obra humana, como comunidades humanas que são, como respostas para a realização dos Homens. É minha profunda convicção que Deus sente um agrado imenso com aqueles empreendedores e gestores de empresas que actuam com amor - não tenho dúvida sobre isso.

Outro tema crítico é o conceito de lucro. A maximização do lucro parece incompatível com o amor como critério de gestão. Mas não é. É se mantivermos o conceito tradicional de lucro, como retorno financeiro do capital investido. Não é se modificarmos geneticamente o conceito de lucro.

Fiz um exercício: na Morais Leitão, temos políticas, como por exemplo tentar pagar o ordenado médio como ordenado mínimo. Aplicado, por exemplo, a empregadas de limpeza, não tem vantagem económica. Receberiam o ordenado mínimo sem revolta. E à volta disto eu pensei, "Mas para nós é fundamental fazer isto." É a compensação não material do nosso investimento. O lucro é o retorno financeiro, certamente, mas também é o retorno não financeiro que aquele que investe decide e pretende obter como retorno dos seus investimentos.

É a modificação genética do conceito de lucro. Isto muda muito. Com esta ideia, os cristãos, os Homens de boa vontade, podem ficar mais à vontade na vida das empresas, digamos assim, internalizando no conceito de lucro muito do que por amor fazemos no quadro da vida económica.

Por outro lado, o amor é um factor de riqueza - não tenho dúvida! Quanto vale o amor? Qual é o valor económico do factor inspiracional? Se a minha filha, que aqui está, entrar numa empresa, com os seus vinte e seis anos, e encontrar no topo da empresa uma pessoa com um testemunho de vida coerente, que lhe diz "Eu tenho o amor como critério de gestão", qual será o seu grau de motivação? Qual é o grau de contágio?

Olhemos o factor relacional, por exemplo no plano externo: quanto vale um parceiro em vez de um fornecedor ou de um cliente na vida das empresas? Quanto vale o nosso parceiro acreditar que será tratado por nós como nós nos trataríamos a nós próprios? O factor poupança - eu aqui penso também nos advogados, eu vivo, em boa parte, da desconfiança, não tinha o que tenho se houvesse confiança nas relações económicas. Realmente, o que as empresas poupariam se houvesse mais confiança e como o amor pode ser determinante para essa confiança. Não há nada mais barato do que a confiança nos negócios, nada! É assim nas famílias, é assim nas empresas, e é assim na economia em geral.

Outro aspecto fundamental: o amor tende para sempre. O que é que a economia mais procura? Qual é a palavra mais recorrente? É a sustentabilidade. Tememos o longo prazo, não é? Estamos com medo de 2030, com medo de 2040. A introdução do critério de pensarmos no outro como se fossemos nós mesmos, é um regulador extraordinário para a sustentabilidade das empresas e da economia a longo prazo.

Finalmente, o amor e a política. Se repararem, hoje em dia os políticos não têm qualquer expectativa de serem amados pelo povo. E o que é mais grave é que o povo não tem qualquer expectativa de ser amado pelos políticos. Isto é uma lesão profunda da democracia moderna. Com a ajuda do D. Manuel Clemente, reuni três citações, que estão aqui neste meu livro, dos três fundadores da Europa, o Adenauer, o Schuman e o De Gasperi. Eles falam todos nesta palavra e falam em amor entre os povos. Não é de amor entre os povos que neste momento a Europa precisa? Não foi por falta de amor entre os povos que chegámos à situação em que estamos?

Esta ideia de que no amor é sempre o mais forte que cuida do mais fraco, não é verdade. Nós portugueses, não quebrámos esse dever de respeito e de amor pelos outros povos europeus quando nos endividámos como uns embriagados? Hoje, depois de tantos sacrifícios, hoje somos credores do amor dos povos mais fortes da Europa, mas também nós quebrámos o dever ser do amor entre os povos.

Os fundadores da Europa tinham a radicalidade própria de quem estruturou os seus valores, a sua ética, o seu carácter, num campo de concentração, é verdade. Mas o ser cristão dá-nos uma paz interior enorme, enorme, para podermos falar assim sem ter que passar por campos de concentração.

Que aconteceria se libertássemos a análise do amor sobre algumas daquelas questões que estão em cima da mesa no quotidiano da sociedade moderna? Por exemplo, os impostos. O Amor diz-nos que, num certo sentido, o Estado não existe. Existem cidadãos que pagam a outros cidadãos. A relação do imposto é uma relação profundamente humana, quer dizer, aquele que beneficia está a exigir da vida do outro algo que deve merecer uma consideração, ela própria amorosa, assim como aquele que paga, e que pode pagar, tem a responsabilidade amorosa de o fazer.

Quando Cristo entrou na casa de Zaqueu, Zaqueu estava aflito, como nós todos, e disse a Cristo, "Eu vou dar metade do que tenho e quatro vezes mais a quem tirei". "Vou dar metade do que tenho". E Cristo disse, "A salvação entrou em tua casa." Já alguma vez analisámos o contrato social moderno à luz do amor? Temos noção do amor que sustenta o contrato social português?

Olhando estas realidades, o amor tem um trânsito muito superior à agressividade ideológica e aos pontos de vista muito estigmatizados do combate ideológico. Deixemos o amor entrar na economia, na sociedade, na política e vejamos o que acontece.

Obrigado.

[APLAUSOS]

(*) Transcrição revista da palestra de António Pinto Leite, que teve lugar na sede do IDL, em Campo de Ourique, Lisboa, na Sexta-feira, dia 9 de Novembro de 2012.